Nossa História
Para mim é
estranho fazer um histórico de nossas vidas. Mesmo concordando com os versos
“...E o que foi feito é preciso conhecer, para melhor prosseguir...”, sempre
fui mais focado no que acontece no presente e no que precisa ser feito no
futuro. Mas agora vou tentar parar para recordar.
Lembro, de pequeno, a paixão pela praia
e pelo mar, brincando na
areia. As pescarias com varinha de bambu, na Praia Grande perto de Santos, com
meu pai, irmão e tios. Todos os fins de semana que íamos para lá nos divertíamos muito, saindo
sempre com gosto de “quero mais”. Crescendo mais um pouco havia o futebol na praia e as
puxadas de rede de arrastão com toda a família, em noites frias e memoráveis.
Muitos peixes, siris e até camarões se pescava naquela praia no começo dos anos
70. Depois que meu pai limpava os pescados (eu adorava ficar ao lado dele vendo
e aprendendo), tudo era cozinhado por minha mãe e primas para deleite de todos.
Desde então já havia regras: nada era pescado em excesso e tudo que se pescava
se comia. Não havia desperdícios. Os peixes pequenos eram devolvidos ao mar.
Siris com ovas eram soltos. Bons tempos; saudosos.
Crescendo mais um pouquinho,
minha diversão era distinta dos rapazes de minha idade: adorava pescar robalos no casco do navio na
Praia Grande. Enquanto todos os rapazes de 16, 17 anos estavam na noitada, eu
estava dormindo. Antes do sol raiar, lá ia eu com vara de molinete, camarão
vivo na isqueira e alguns anzóis, chumbadas e encastoados reservas para a água.
Via o nascer do sol na água e, em dias bons, só saia para almoçar. Via o sol se
pôr dentro da água. Vivia no
mar e sonhava em morar ao lado dele e viver da pesca. Nessa época comprei
meu primeiro barco: um bote inflável e dei para ele o nome de minha namorada. E
a primeira namorada ? Conheci na praia, morava numa cidade de praia e eu
namorava indo visitá-la na praia.
Um bom tempo depois o namoro
acabou, os peixes acabaram, mas não o amor pelo mar. Era hora de mudanças. Fiz
um ótimo curso de mergulho,
muito voltado à segurança e comecei a mergulhar sempre e praticar caça
submarina nas águas de Ilhabela e Ubatuba. Comecei a conhecer ainda melhor os
segredos do mar e seus tesouros. O mundo submarino parecia (e acho que parece
até hoje) um sonho. Na ânsia de estar mais perto do mar, fiz um curso de arrais
e mestre para poder comprar um barco. O objetivo era ter um barco para poder
mergulhar, mas não só “mergulhar”. Eu queria sair na sexta-feira à noite,
entrar no barco, ir para algum lugar e ficar até o domingo, quando tinha que
retornar para São Paulo. Nessa época começou a surgir o sonho de morar
embarcado.
Comprei meu primeiro veleiro, um
Ranger 22 chamado Topete, que considerava o barco certo para “ir e ficar”.
Detalhe: eu não sabia velejar e nunca tinha entrado num veleiro. Quando fui
pegar o barco, tive uma aula de vela de 4 horas com um amigo e sigo aprendendo
até hoje.
Estar no mar mergulhando e
vivendo, nele e dele, era a vontade maior. Para fazer esses mergulhos em
segurança, tínhamos um grupo de amigos que iam sempre juntos. Deles, muitos se
preservam até hoje como grandes amigos. E nesse grupo conheci Mônica.
A Mônica adorava o mar. Tinha
recordações muito parecidas com as minhas da mesma Praia Grande. Tinha dezenas
de gostos parecidos com os meus, mas até começarmos a namorar passaram-se uns
dois anos (a pressão do grupo para namorarmos funcionou às avessas para ambos).
Várias vezes nos encontrávamos nos fins de semana de mergulho. Nesse ínterim
casei com outra moça, separei e quando comecei o namoro com a Mônica foi
fulminante. Já começamos a falar em viver perto do mar, viver num veleiro e
começamos a encarar nossas primeiras
aventuras a bordo do Topete.
Após uma semana a bordo de um
Fast 345 que alugamos para velejar e mergulhar em Parati, Angra e Ilha Grande,
começamos a sentir o Topete muito pequeno. Resolvemos então comprar um barco
maior: o escolhido foi um Velamar 29 chamado Voodoo. Passeamos bastante com ele, mas o sonho, então, já
era pegar um barco e sair pelo mundo. Eu deixaria a informática e ela o direito
e passaríamos a morar num veleiro grande, vivendo de charter’s. Para isso
escolhemos um ótimo projeto de cruzeiro chamado Trinidad 37 e fechamos negócio
para construir o barco. Trinta-Réis
seria seu nome, nome de um pássaro, porque lemos que este é o ser que mais
migra no mundo e desejávamos viajar bastante.
Só não contávamos com uma coisa,
aliás, duas. Engravidamos. Primeiro do Jonas e, apenas quatro meses após o Jonas ter nascido, da Carol. Fizemos dois filhos
enquanto a fábrica construía um barco.
Mas não deixamos de fazer nossas aventuras mesmo grávidos. Não esqueço de uma
frente fria que pegamos quando a Mônica estava grávida de 5 meses do Jonas e
sua cara de felicidade com o temporal e ventania, no cockpit ao meu lado, vendo
as ondas crescerem e arrebentarem no costado. Ela adorava tempestades. Também
não esqueço quando, com 8 meses de gravidez do Jonas, demos a volta mergulhando
na Ilha das Cabras aqui em Ilhabela. E quando, um pouco antes dele nascer fui
fazer uma caça submarina com amigos na Ilha Vitória e pegamos uma tremenda
tempestade elétrica na volta. Meu único pensamento era: puxa, eu não vou poder
ver meu filho nascer ! A tempestade nos deixou passar, as crianças nasceram e
eu vi os dois partos.
Com dois bebês para criar e a
responsabilidade de pais muito forte nos dois, sentimos que os planos de viajar
tinham que ser postergados. Mas sentíamos que o contato e a vivência
no mar era exigência para criarmos bem nossos filhos. Com um mês e meio de idade (assim que o
pediatra permitiu descer a serra por causa da formação do ouvido) já levamos
Jonas para velejar. Carol
também, com um mês e meio de idade fez a sua estréia. A “lavagem cerebral”
começou até antes deles nascerem, com a decoração do quarto totalmente ligada a mar. Com um ano e
meio de idade, Jonas veio conosco de Santos para Ubatuba.
Essa foi a única vez até hoje que eu o vi enjoar e também Mônica, que passou
mal por causa do nervoso com o Jonas. Com três e quatro anos eles passaram
quinze dias conosco a bordo do Trinta-Réis em Parati e Ilha Grande, com Luís e Mariana, um casal de
grandes amigos. Carol sempre era a primeira a
entrar na água e a última a sair. Jonas sempre às voltas com seus barquinhos. Aliás, tudo se
transformava em barcos para ele (até os carrinhos) e os bonecos viravam
tripulantes.Nesse ponto, começamos a achar que havíamos exagerado na dose da
“lavagem”. Todos nossos fins
de semana eram no mar.
Quando tínhamos algum problema e não podíamos descer, a semana seguinte era
muito difícil de passar.
Morando em São Paulo, com um
ritmo de vida e de trabalho louco e dois filhos pequenos para criar, vimos que não estávamos vivendo com a
qualidade de vida que queríamos para eles e para nós. Precisávamos de mudanças. Precisávamos viver
e, de preferência, junto ao
mar. Construímos uma casa em Ilhabela e, conforme nossos sonhos, nos mudamos em outubro de 98. E
mais: definimos que, quando as crianças
estivessem com 6 e 7 anos respectivamente, em 2001, embarcaríamos para viajar
pelo mundo.
Só que, na nossa onipotência de
planejamentos, esquecemos que a vida cobra que deve ser vivida aqui e agora. Na
forma de uma doença repentina, um temporal veio: furacão, ciclone, tufão, todas
as forças juntas, massacraram nossa vida e levaram nossa amada companheira, mãe
e amiga. Mesmo a força dessa forma figurativa de falar não consegue expressar
toda a destruição causada em nossos sentimentos e nossas falsas seguranças. Era
março de 2000. Mônica
tinha apenas 38 anos nessa época e muitos sonhos a concretizar.
Quando me vi
sozinho, com dois filhos para criar e sem a estrutura familiar perto para me auxiliar,
pensei em fazer o mais cômodo na situação: comprar um apartamento no prédio dos
pais e irmãs da minha esposa (sempre
muito presentes para nos auxiliar quando estávamos em São Paulo) . Isso
significaria retornar a todos os problemas da cidade grande e a ficar longe dos
meus filhos muito tempo, tempo meu que eles precisavam muito mais agora.
Relembrei uma conversa que tive com minha esposa três dias antes dela falecer,
quando analisamos como havia sido ótima a mudança para a Ilha para todos,
principalmente para as crianças.
Resolvi tentar o mais “difícil”: assumi
sozinho e totalmente a educação
e cuidados de meus filhos
e continuei a morar em Ilhabela,
longe da família. Hoje, depois de mais de 5 anos do falecimento de minha
esposa, vejo que a minha opção se mostrou certíssima. Tenho filhos
maravilhosos, muito próximos a
mim e cresci muito como pessoa fazendo as duas “funções” (pai e mãe). Eles
continuaram nadando e brincando na praia,
aprenderam a mergulhar, a pescar, a velejar, a preservar e a amar o mar.
Pouco depois
do falecimento da Mônica vendemos o Trinta-Réis. Dois motivos me levaram a
isso: as despesas altas de um barco grande com apenas meu trabalho para manter
e, principal, a impossibilidade de sair com ele por motivos emocionais. Hoje
ele está em Ubatuba com o Dimitri,
que acabou se tornando um grande amigo e com uma família maravilhosa que cuida
muito bem dele.
A partir daí
comecei a velejar num Fast 23 de um amigo, Ladislau, fanático por regatas. Iniciou-se o que posso
chamar de “verdadeiro aprendizado”. Muitas regatas, com ventos fortes e fracos,
aprendendo a técnica de bem velejar com um ótimo e paciente professor. Aliás,
foram vários os professores, pois aprendemos com todos os tripulantes a bordo
(às vezes, aprendemos o que não deve ser feito !!!). As crianças também
velejavam conosco. Corriam regatas e ficaram fanáticas por troféus e medalhas.
Um amigo de Ubatuba, extremamente competitivo em regatas, permitia que as
crianças fossem junto em algumas regatas, mesmo representando peso extra a
bordo.
Então, após
uns dois anos que velejei como convidado em barcos de amigos, Ladislau resolveu
comprar um outro barco para levar para a represa. E eu tentei ajudar. Numa das
“olhadas” nos barcos a disposição para vender, levei as crianças. Quem disse
que eles queriam sair do barco ? E já diziam que aquele barco era legal, que
podíamos comprar com o Ladis e que podíamos viajar muito com ele. O único
detalhe era que o veleiro era um veleiro típico de competição: sem nada dentro.
Mas isso serviu para que eu percebesse que o caminho estava traçado e que meus
filhos o estavam cobrando. Conversei com o Ladis, sugeri uma sociedade,
procuramos um barco que atendesse o lado regateiro do Ladis e cruzeirista nosso
e achamos o Fandango. Ótimo barco, muito bem construído, muito bem projetado,
muito gostoso de velejar, muito bom de manobras e rápido na raia. Nestes três
anos e meio que estamos com ele velejamos muito, regatas e cruzeiros, e sempre
com prazer. O Fandango nunca nos deixou na mão e provou suas qualidades nas
mais diversas situações.
Em 2002 fui
convidado pelo amigo Valmir
para correr a regata Recife-Fernando de Noronha, a popular Refeno. O barco
dele, o Xe-Rocuá ficava em Ubatuba e tínhamos que levá-lo até Recife, correr a
regata e voltar. Uma aventura e tanto, na qual entrei de cabeça. Ajeitei
calendários para não atrapalhar muito as crianças, arrumei gente de confiança
para ficar com elas nos períodos da viagem, feita em etapas, e embarquei, mesmo
com o coração apertado por deixá-los, para viver essa maravilha de viagem. Só
não pude cumprir o percurso de volta Salvador-Ubatuba porque as crianças
precisaram de mim na época. Na volta da viagem trouxe, além do conhecimento da
costa e amizades estreitadas,
um novo sonho e a segurança para cumpri-lo: percorrer a costa brasileira numa
viagem de um ano e dois meses com meus filhos.
Sugeri a eles e resolvemos nós três, então, que era hora de
retomar o nosso projeto: realizarmos juntos a viagem de barco que era nosso
sonho inicial (do qual eles já participavam intensamente, mesmo pequenos),
obedecendo nossos limites.
O projeto visa conhecer o Brasil
real, com sua gente, cultura, sotaques, realidades, paisagens, adultos e
crianças. E ao mesmo tempo, podendo parecer paradoxal, usar as ferramentas da
nossa era digital e globalizada para informar às pessoas nossas experiências e
mostrar o privilégio que temos de deixar de lado a “virtualidade” das
informações e relações modernas, para que elas possam refletir sobre o modo
como vivem e como estão criando seus filhos. Acredito que a falta de humanidade
que se avoluma no mundo de hoje vem, em grande parte, do distanciamento das
pessoas do mundo real e da alienação causada pelos meios de comunicação (até as
guerras, mortes, crimes e tragédias ficam engraçados, românticos ou aventurosos
no filmes de hoje). As pessoas se acostumam a esses eventos, deixam de achá-los
aberrações (a não ser que em alguma circunstância os vivam), param de cobrar
providências e fazer sua parte para que não aconteçam e, conseqüentemente,
permitem o seu aumento indiscriminado, gerando um grande círculo vicioso.
Hoje tomo a liberdade de fazer
um convite: gostaríamos de tê-los como tripulantes virtuais na nossa viagem. E
um desejo: que você, leitor, tome a rédea de sua vida e viva seus sonhos.
Não vou colocar no site apenas as estórias e belezas da viagem, mas também todas as informações técnicas para quem quiser fazer algo semelhante. Desejo que o site se torne um grande guia para navegadores sonhadores e que o nosso exemplo sirva para que você corra sempre atrás da realização de seus sonhos.
E lembrem-se sempre que a vida cobra: deve ser vivida aqui e agora !